segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Literatura Regional

O Regionalismo na Literatura brasileira

Tereza Ramos de Carvalho[1]

O regionalismo pode ser compreendido de várias maneiras: quanto ao assunto, quanto à linguagem ou quanto o arranjo narrativo. Pode aparecer numa obra relacionado ao mundo rural, ora como algo ultrapassado, mas também como literatura popular, como representação da violência ou até mesmo como uma espécie de nacionalismo. A verdade é que o termo regional, ou regionalismo suscita muitas discussões no meio acadêmico por parecer um assunto voltado ao que Bosi chama “literatura menor”.

O crítico Antonio Candido classifica a narrativa regionalista em três fases: o regionalismo pitoresco, o regionalismo crítico e o super-regionalismo.[2] Conforme Candido, num primeiro momento, no final do século XIX e início do século XX, o regionalismo pitoresco parece funcionar como elemento de segregação entre o campo e a cidade e as personagens são absorvidas pela paisagem e os costumes. É um regionalismo caracterizado pelo tratamento anedótico que é dado à personagem, cuja função parece ser servir de espetáculo para o homem da cidade. Essa corrente, com o passar do tempo transforma-se, gerando a literatura sertaneja, que se estendeu às melhores tendências literárias após 1930. A partir do decênio de 1930, esse regionalismo pitoresco cede lugar ao chamado romance nordestino, com traços de denúncia e aspereza crítica, ou seja, o regionalismo crítico, mencionado anteriormente. Nesse romance, o que antes - personagem e espaço - era apresentado com objetivo de servir de espetáculo para o homem da cidade, agora aparece com uma complexidade até então inexistente na narrativa regionalista. Os autores de narrativas críticas pressupõem leitores também críticos, conscientes dos problemas sociais.

O regionalismo prende-se, pelo menos durante o Romantismo, às tendências nacionalistas que tomaram grande força entre nós a partir dos movimentos pela independência política e cultural. Apesar de o indianismo ser considerado o fruto mais característico desse nacionalismo romântico, o mesmo impulso nacionalista que promove o culto ao índio numa tentativa de definir a etnia brasileira, em uma etapa ulterior, mitifica o sertanejo.

O sertanismo pode ser considerado, ainda que com certas restrições, a primeira forma de regionalismo na ficção brasileira. E os mais notáveis exemplos tanto do indianismo como do sertanismo romântico são-nos fornecidos por José de Alencar, Visconde de Taunay e Franklin Távora.

O Realismo, com sua preocupação objetivista e documental, propiciou o surgimento de grande número de romances regionalistas. E, ao longo de quatro décadas, de 1880 até o advento do Modernismo, foi a tendência dominante na ficção, muito embora tenha assimilado elementos de outras correntes coetâneas, como o Parnasianismo, o Simbolismo e o Impressionismo. Contribuiu para que houvesse, sobre um denominador comum realista, certa diversidade de aspectos.[3]

Vale abrir um parêntese para falar sobre Simões Lopes Neto como precursor do regionalismo e portador de um regionalismo, não só pitoresco, mas carregado de verdade social e psicológica. Simões Lopes Neto é o exemplo mais feliz da prosa regionalista no Brasil antes do Modernismo. É considerado por Alfredo Bosi “o patriarca das letras gaúchas”.[4] Ao publicar sua obra, a partir de 1910, o regionalismo na literatura já havia passado por duas gerações no cenário nacional.

Precedendo a Simões Lopes Neto, o escritor romântico José de Alencar aparece na literatura brasileira do século XIX como o consolidador do romance, um ficcionista que cai no gosto popular. Sua obra evidencia as contradições de suas posições políticas e sociais: grande proprietário rural, político conservador, monarquista, nacionalista exagerado, escravocrata. Todas essas posições, sobretudo o nacionalismo, transparecem em seus livros de início, espontaneamente, e por fim de modo premeditado. O romancista tentou traçar, em sua obra, um grande painel do Brasil, cobrindo-o por inteiro, o Norte e o Sul, o litoral e o sertão, o presente e o passado, o urbano e o rural, na tentativa de estabelecer uma linguagem brasileira. Seus romances O Til e O Tronco do Ipê são obras que focalizam o meio rural. A primeira retrata as fazendas de café no interior de São Paulo e a segunda, uma fazenda banhada pelo rio Paraíba, no norte do Rio de Janeiro.

O Sertanejo e O Gaúcho são as duas obras regionalistas de Alencar: elas mostram o relacionamento do homem com o meio físico. Ao descrever o nordestino, o sertanejo, o autor consegue montar um quadro mais próximo da realidade, conhecedor que era da região e do homem. Ao tentar retratar o gaúcho e sua região, incorre em falhas provocadas pelo desconhecimento da região. Através dessas obras, Alencar é, indiretamente, incentivador do regionalismo crítico na literatura brasileira, pois, ao levar a efeito seu plano de enunciar o país, logo se levantaram vozes de desacordo. Franklin Távora criticou a visão de seu conterrâneo sobre o sertanejo, e os vários sul-rio-grandenses[5], não concordando com a leitura de O gaúcho que consideravam-na uma obra artificial, numa reação positiva para o regionalismo, propuseram-se a reinterpretar a realidade, apresentando a especificidade local.

Dentre esses sul-rio-grandenses destaca-se Simões Lopes Neto que, ao dar o poder da palavra a personagens iletrados, objeto sem voz da literatura, descobre que não bastava falar apenas sobre o gaúcho, era preciso dar-lhe voz.

Nota-se uma estreita semelhança entre Simões Lopes Neto e Guimarães Rosa, quanto ao tratamento que ambos dão a seus personagens. Simões Lopes Neto em Contos gauchescos delineia sua estratégia narrativa: alguém pede atenção do leitor para o personagem Blau Nunes, um velho homem do campo. O personagem, imediatamente, assume a primeira pessoa do discurso. Esse personagem narrador passa a ser o detentor do poder da linguagem.

No transcorrer das narrativas do livro, podemos perceber a presença de um interlocutor não nomeado, mas referido como patrãozinho, mais jovem que o narrador Blau Nunes. Esse interlocutor não conhece a vida no campo, mas apresenta algum interesse tanto pela vida do narrador como por sua história.

Se considerarmos a estrutura narrativa de Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, editada pela primeira vez em 1956, percebemos algumas semelhanças entre o personagem Riobaldo e o personagem Blau Nunes, de Simões Lopes Neto. Riobaldo fala sobre sua vida, questiona a existência de Deus e do Diabo, fala sobre os mistérios da própria existência a um interlocutor que não pertence àquele ambiente, parece ser da cidade. A dessemelhança entre Blau Nunes e Riobaldo é que Blau e seu ouvinte se movem pela geografia ficcional, enquanto que Riobaldo e o doutor – seu interlocutor - permanecem no mesmo plano espacial enquanto a narrativa vai se construindo. Fora essa diferença, o procedimento narrativo entre os autores é similar.[6]

Não podemos afirmar se o mineiro recebeu ou não influência do gaúcho. O certo é que, cronologicamente, foi Simões Lopes Neto quem lançou a matéria local ao nível da literatura regional e, pela primeira vez, apresentou, sem exotismo, o narrador iletrado.

No ciclo do regionalismo nordestino, são abordados os inúmeros problemas de um Nordeste decadente desde que o pólo político do Brasil se transferira para o sul. A miséria, as relações do homem simples com o poder e com os poderosos, a hostilidade do meio estéril, o descaso dos políticos com esse estado de coisas, enfim, tudo que pertence àquele universo passa a ser abordado num tom crítico em nossa literatura.

O Movimento modernista que, em sentido amplo, iniciou-se com a Semana de Arte Moderna (1922) e vem até a atualidade, trouxe à literatura brasileira o conceito de modernidade artística: a idéia de que a liberdade formal que defendia deveria veicular uma concepção crítica da realidade do país. Período histórico amplo, de grande produtividade literária, didaticamente classificado em três fases: fase heróica, fase ideológica e a nova reflexão da linguagem. É interessante observar que, mesmo com o aparecimento de novas tendências, estas mantêm pontos de contato mais ou menos estreitos com as tendências anteriores. Dessa maneira, podemos dizer que uma determinada obra sempre se insere numa linha de continuidade artística. É o caso da literatura regionalista, conforme podemos atestar desde o Romantismo.

O Modernismo mudou o conceito das “escolas” literárias tradicionais, e, ao trazer para a Literatura Brasileira o conceito de modernidade artística, deu liberdade ao escritor, para associar, em sua obra, conteúdo e forma. O trabalho do escritor deveria propiciar uma nova visão do país. Assim o Modernismo desencadeou um processo de ruptura criativa em relação ao passado literário e passou a ser visto de maneira crítica. Muitos autores, seguindo a linha experimentalista, romperam com a forma tradicional de contar histórias e abriram caminho para uma nova forma de ler e narrar o cotidiano.

Os romancistas de 1930, embora não pretendessem se manter na linha do experimentalismo estético das correntes de vanguarda, consideravam irreversíveis muitas das conquistas dos primeiros modernistas, tais como o interesse por temas nacionais, a busca de uma linguagem mais brasileira e o interesse pela vida cotidiana. Entretanto, viram-se diante de uma questão de outra natureza: como dar resposta artística ao momento de fermentação política e ideológica que estavam vivendo? E no tocante ao papel do escritor: de que forma o artista com sua obra poderia, concretamente, participar das transformações que estavam ocorrendo na sociedade?

O resultado desses questionamentos foi o surgimento de um romance mais amadurecido, com um enfoque mais direto dos fatos, fortemente marcado pelo Realismo/Naturalismo do século XIX, na maioria das vezes, de caráter documental. O romance trilhou diferentes caminhos, sendo o regionalismo, especialmente o nordestino, o mais importante entre todos. Nota-se, pois, que com a publicação de A bagaceira, de José Américo de Almeida, e, em seguida, O Quinze, de Rachel de Queirós, o romance entrou numa fase nova, de denúncia das agruras da seca e da migração, dos problemas do trabalhador rural, da miséria, da ignorância.

Alfredo Bosi faz um inventário dos autores de diversas partes do país que concorreram para “engrossar esse gênero” – que ele mesmo define como “regionalismo menor” – de valor apenas documental: [7]

José Américo de Almeida, cronologicamente, iniciou o regionalismo no Nordeste com a obra A bagaceira (1928), livro que focaliza o drama coletivo da degradação humana através do excluído social de forma rica e eficiente. A bagaceira abre um novo ciclo na literatura, buscando demolir padrões e preconceitos e abre caminhos para novas gerações. Assim, José Américo redescobre o Brasil revelando o que os outros não vêem: a degradação como fato consumado. O autor protesta contra o sacrifício inútil de um povo, condenado a viver a pena absurda de “não ter o que comer na terra de Canaã”.

Em A bagaceira, a seca não é propriamente a temática da obra. Como analisa Rachel de Queirós, “é um romance de retirantes, naufragados ou refugiados na bagaceira, na terra fresca e úmida, estranha e quase adversa para eles, que é o brejo. (...) assim, o grande personagem do livro não é o velho sertão da seca, é o elemento, para nós, novo e singular do brejo e da bagaceira”.[8]

Considerando a data de publicação de O Quinze (1930), romance de Rachel de Queirós, podemos situá-la como uma das autoras pioneiras do moderno romance regionalista brasileiro. O texto revela com intensidade a problemática social do Nordeste: a miséria, a bruta realidade da seca, da fome e da migração, a desigualdade e a indiferença dos poderosos diante de tão grave situação. Esse romance é um dos romances mais celebrados de Rachel de Queirós, e tem como tema central, a seca de 1915 e o drama vivido pelo sertanejo, ali representado por Chico Bento e sua família.

Jorge Amado, fecundo contador de histórias, soube captar as contradições e os problemas de seu estado (Bahia). Forte nos temas e na extraordinária arte de escrever transportou para os livros a grandeza de sua terra, iniciando o Ciclo do Cacau. Conforme Alfredo Bosi, Jorge Amado como “Cronista de tensão mínima, soube esboçar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis que lhe franquearam um grande êxito junto ao público”. · Na maior parte de suas obras, principalmente, as primeiras que publicou, apresenta preocupação político-social, denunciando, num tom direto, lírico e participante, a miséria e a opressão do trabalhador rural e das classes populares – (Cacau, Suor). Nas obras subseqüentes, sua força poética voltou-se cada vez mais para os pobres, para a infância abandonada e delinqüente, para a miséria do negro, para o cais de sua terra natal, para a seca, o cangaço, a exploração do trabalhador urbano e rural e para a denúncia do coronelismo latifundiário.

O paraibano José Lins do Rego levou para as páginas de suas narrativas o telurismo emoldurado pela nostalgia de seu tempo de menino e de adolescente. A região canavieira da Paraíba e Pernambuco, em período de transição para a usina encontrou, no “ciclo da cana-de-açúcar” de José Lins, a sua mais alta expressão literária.

José Lins sempre se declarou um escritor espontâneo e instintivo, chegando a apontar como referência para sua escritura os cegos cantadores de feira, amados e ouvidos pelo povo porque tinham o que contar.

Graciliano Ramos representa, em termos de romance moderno brasileiro, o “ponto mais alto de tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou. O panorama social de suas obras é retratado de maneira rara pela força com que ele o apresenta”.[9] Autor de linguagem direta e correta, moldada num estilo seco, conciso, com poucos adjetivos, soube equilibrar a investigação profunda dos problemas sociais nordestinos com a análise psicológica de seus personagens, unindo regionalismo e intimismo. Ele “via, em cada personagem de suas obras, a face angulosa da opressão e da dor”.[10]

A realidade nacional foi-nos apresentada através de uma grande variedade de obras literárias, e o romance regionalista tomou diversos rumos, focalizando diversas regiões: enquanto José Lins do Rego, ao lado de Graciliano Ramos, focalizaram de perto as transformações econômicas do Nordeste, Jorge Amado encarnava o romance da Bahia ocupando-se do negro e do mestiço; o Rio Grande do Sul manteve sua tradição cultural através de Érico Veríssimo, que encerrava sua tarefa com a obra O tempo e o vento, seguido de Dionélio Machado, Viana Moog, Ciro Martins, dentre outros.

Valores novos foram surgindo, enriquecendo com o conto e o romance nossa literatura de ficção: Otto Lara Resende, Fernando Sabino etc... Do drama humano, incumbiu-se a geração de 45. Nesse espaço de tempo, isto é, entre 40 e 45, houve como que uma cristalização de temas. Depois, novos escritores adquiriram firmeza técnica e maneira segura de expressão. Iniciado o super-regionalismo, a partir de 45, a ficção brasileira passou por grandes experiências com o aparecimento de Guimarães Rosa, autor que alcança êxito universal ao recriar a linguagem regional de forma extremamente elaborada, dando-nos mostra palpável de como a palavra é flexível e a língua, conseqüentemente, maleável.

Com Guimarães Rosa, no decênio de 1950, nasce a terceira vertente do regionalismo, classificada por Antonio Candido de super-regionalismo. Uma narrativa de cunho regional que, no entanto, apresenta o que o homem tem de mais universal. O super-regionalismo é uma espécie de superação do nacionalismo pitoresco, mediante o tema regional crítico como veículo de uma expressão de cunho universalista. Ou seja, no super-regionalismo, a região deixa de ser particular para ser universal, é o universalismo do discurso moderno.[11]



[1] Doutoranda em Literatura brasileira, pela universidade de Brasília - UnB

[2] Antonio Candido, Literatura, espelho da América. 1995. p. 18. 19.

[3] Trata-se do regionalismo pós-romântico de Simões Lopes Neto, Valdomiro Silveira, Afonso Arinos, Coelho Neto, M. Lobato, H. de Carvalho Ramos, com tendência a ressaltar o aspecto pitoresco que se estende à fala e ao gesto, tratando o homem como parte da paisagem, envolvendo ambos no mesmo tom de exotismo. BOSI, 1994, pp. 207. 214.

[4]Idem, ibidem. 1994, p. 212.

[5] Ver nota introdutória de Contos gauchescos, por Luís Augusto Fisher, 1998, pp. 5. 27.

[6] Idem, ibidem, pp: 5. 27.

[7] , Alfredo Bosi. História concisa da Literatura brasileira. 1994 cap. VIII.

[8] Ângela M. B.de Castro. Re-leitura de A bagaceira. 1987, p. 32

[9] Alfredo Bosi, op cit., pp. 332. 405

[10]Idem, ibidem.

[11] Antonio Candido, op. Cit., p.18.

2 comentários: